15/06/2011

Por que o desenvolvimento econômico leva à desigualdade social?

Carmo Gallo Netto

Profecias

Olho adiante, em dias não muito longínquos, para a maior mudança jamais ocorrida na vida material da humanidade.

Vejo-nos livres para voltarmos aos princípios mais claros e corretos da religião e da virtude tradicional - em que a avareza é um vício, a usura um delito e o amor ao dinheiro detestável e que aqueles que trilham o caminho da virtude e da sabedoria conferem menos atenção ao amanhã.

Valorizaremos mais os fins do que os meios e preferiremos o bom ao útil.

Reverenciaremos aqueles que conseguem nos ensinar como aproveitar as horas e os dias virtuosamente e bem, as encantadoras pessoas capazes de gozar diretamente com as coisas, os lírios do campo que não fiam nem tecem.

Benefícios do capitalismo

Um leitor menos avisado julgará que a citação acima trata-se de um texto sagrado ou de alguma pregação religiosa.

Mas essa quase profecia, que abre a tese de Davi José Nardy Antunes, apresentada ao Instituto de Economia (IE) da Unicamp, é de um dos mais reverenciados economistas dos tempos modernos, que vislumbrava as possibilidades do emergente capitalismo face às novas conquistas advindas do progresso da ciência e da tecnologia: John Maynard Keynes (1883-1946).

Ao abordar o tema "Capitalismo e Desigualdade", o pesquisador afirma que o desenvolvimento capitalista, que considera contraditório em sua essência, elevou a produtividade do trabalho a níveis tais que reduziram enormemente as necessidades da ação humana.

Para ele, o desenvolvimento capitalista foi bastante importante para o futuro do homem em consequência da geração de progresso técnico, poupador de mão de obra. Este fato se revela na colossal ampliação da capacidade de produção agrícola e industrial das sociedades capitalistas mais desenvolvidas nos últimos 200 anos.

"Se antes, a baixa produtividade e a lentidão do trabalho mantinham qualquer tipo de bem escasso, a produção industrial permitiu a superação da escassez e a substituição do trabalhador por máquinas", afirma.

Além do capitalismo

Em vista disso ele considera, concordando com previsões de Keynes sobre as possibilidades sociais e econômicas das futuras gerações, que "o desenvolvimento tecnológico criou verdadeiras possibilidades de emancipação, de ampliação da liberdade e de uma vida mais plena e rica de sentido".

Entende que, com o avanço da mecanização dos trabalhos socialmente necessários, ocorrem condições para a progressiva supressão da divisão social do trabalho, para a conquista da verdadeira igualdade social e para a liberdade individual.

Antunes constata que um lampejo destas possibilidades pode ser visto ao longo do pós-guerra, em que foi criado um arcabouço institucional que permitiu o desenvolvimento por algumas décadas de um mundo mais livre em que se verificaram maior igualdade das rendas, redução de carga de trabalho e grande progresso material.

Entretanto, considera ele, que após décadas de grande ascensão das condições de vida nos países desenvolvidos, a volta do liberalismo recolocou a liberdade do capital acima das conquistas sociais e liberou as tendências mais destrutivas do capitalismo, mantidas sob controle durante o pós-guerra até os anos 70.

Para o estudioso, disto resultou grande regressão social no mundo altamente desenvolvido nas últimas décadas graças principalmente à evolução tecnológica. Assim, afirma, "sob a ótica neoliberal, o progresso social fica bloqueado pela busca desenfreada e irracional por cada vez mais lucro".

Contradições do nosso tempo

Para Antunes, esta é uma das maiores contradições do nosso tempo, uma vez que o monumental avanço da produtividade poderia liberar o homem do trabalho pesado e de longas jornadas, de forma a ampliar o tempo livre.

Para ele, essa contradição se revela e acentua-se na criação de um excedente cada vez maior de pessoas não mais necessárias à produção. Este efeito se torna cada vez mais drástico quando se leva em conta que boa parte dos empregos, embora ligados à produção material, atendem ao consumismo vazio e desnecessário que acelera a devastação do meio ambiente.

Este modelo de desenvolvimento é ainda permeado por uma desigualdade de rendimentos que acomoda em ocupações precárias a massa crescente de excluídos, que passam a compor e ampliar de forma desmesurada um questionável setor de serviços. Para ele, "os trabalhadores foram deslocados para a provisão de serviços pessoais, o que foi facilitado pela expansão da renda urbana e pela desigualdade social, em grande expansão nas últimas décadas".

O pesquisador conclui que a grande força ideológica da economia tornou-se um imperativo do qual ninguém pode escapar nas sociedades contemporâneas, assim como aos seus valores de competição, de trabalho e de poupança.

E enfatiza: "Se o trabalho socialmente necessário fosse redistribuído, o desemprego, a enorme desigualdade, a pobreza, as péssimas condições de vida e a ausência de sentido da vida poderiam ser radicalmente amainados".

No estudo, Antunes empenhou-se em demonstrar que os homens estão presos às necessidades materiais não apenas por elas mesmas, mas principalmente devido à forma de organização social.

Desigualdades capitais

A motivação fundamental de Davi Antunes resultou da observação da brutal desigualdade que permeia a sociedade brasileira. Inicialmente, pretendia restringir a pesquisa à desigualdade no Brasil.

Mas as discussões que vivenciou como colaborador no Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp e na Facamp, onde atua como professor, o conduziram a abordar as relações entre o desenvolvimento do capitalismo e a desigualdade social no mundo, tomando como base a Inglaterra do século XIX e os EUA desde o início do século XX.

O economista analisa o desenvolvimento do capitalismo, do emprego e do mundo dos serviços no período de 1800 a 1970. Defende a tese de que, nestes quase dois séculos, o desenvolvimento capitalista liquidou progressivamente as ocupações e os trabalhos necessários à produção e à circulação de bens, dado que a lógica do capital implica a poupança de custos em geral e de trabalho em particular. Isto levou à queda maciça das atividades mais penosas, sujas e extenuantes fisicamente, mas até então fundamentais para a sobrevivência do homem.

Economia de serviços

Paralelamente, desenvolveu-se um mundo cada vez mais urbano, complexo, menos manual e concentrado nos serviços. Por sua vez, a Revolução Industrial acelerou a mecanização das atividades agrícolas que reduziram drasticamente a necessidade do trabalho manual no campo e possibilitou a alimentação dos contingentes concentrados nas cidades. A sempre crescente mecanização provocou ainda a diminuição do trabalho do chão de fábrica, embora a produção de bens se expandisse vertiginosamente.

Antunes lembra também que a industrialização provocou uma revolução de âmbito familiar ao disponibilizar bens de consumo duráveis que permitiram grande presteza na execução de diversos serviços domiciliares geralmente atribuídos à mulher, o que criou condições para sua entrada no mercado de trabalho.

Face ao desenvolvimento das cidades e à criação de novas necessidades, o mundo criado pelo capitalismo se alicerçou em serviços urbanos mais bem pagos e no desenvolvimento de uma classe média que expressa o avanço da divisão social do trabalho e da produtividade. No início, as fábricas e os serviços delas decorrentes demandaram grande quantidade de trabalhadores concentrados em um mesmo local, gerando novas necessidades como segurança pública, assistência médica, destinação de dejetos, limpeza urbana, iluminação pública, acesso à água potável, transporte, planejamento urbano, entre outros.

Essa nova realidade, diz o autor, abriu espaço para que uma parcela enorme da população se dirigisse para a crescente demanda de serviços pessoais, assim chamados por atenderem diretamente às pessoas. E diferentemente do que muitas vezes se acredita, o contingente que abandonava o campo se dividia entre os serviços ligados diretamente à produção e os pessoais. Os gráficos apresentados no trabalho mostram que nos EUA o emprego industrial cresce significativamente até os anos 20, mas daí em diante é sistematicamente superado pelo setor de serviços.

A tese destaca ainda que não ocorreu uma migração direta da agricultura para a indústria e desta para os serviços. Essa mobilidade se deu concomitantemente para a indústria e para os serviços, que com o tempo superam as oportunidades criadas na indústria.

Estado do bem-estar

Antunes explica que a produção do aço, do automóvel, dos bens domésticos duráveis - geladeiras, fogões, liquidificadores, lavadeiras, aspiradores, bicicletas, rádios - ampliaram inicialmente a produção industrial, mas a crescente produtividade reduziu significativamente a necessidade de mão de obra.

A propósito, ele lembra que em 1920 nos EUA já se produziam dois milhões de carros/ano - hoje no Brasil se fabricam cerca de três milhões. Antes da crise de 1929 lá se produziam 4,5 milhões de veículos/ano, sem que se verificasse aumento significativo da oferta de emprego industrial. A empresa tem cada vez menos operários e mais colarinhos brancos, assim genericamente denominados os que não trabalham diretamente na produção.

O pesquisador destaca que, a partir dos anos 30, nos EUA, esse desenvolvimento se apoiou na intensa ação estatal e na participação de sindicatos e movimentos sociais ativos, social apenas possíveis em uma sociedade urbana e industrial baseada em grandes empresas, grandes fábricas e grandes aglomerações de pessoas.

Dos anos 30 a 70 o estado americano teve importante papel no desenvolvimento da sociedade capitalista. A Grande Depressão levou o governo a restringir a liberdade do mercado e impedir que os cidadãos ficassem à sua mercê. O Estado passou a controlar fundamentalmente os mercados financeiros e a incentivar o crescimento da economia e a geração de emprego público, que se tornou uma questão central. Em 1910, o estado americano dispunha de um milhão de funcionários. Entre 1940 e 1950, já tinha dez milhões empregados principalmente na educação, que além de permitir instrução possibilitava ascensão social. O Estado passou também a garantir empréstimos bancários para a aquisição de moradia.

A crise do capitalismo

Depois do grande progresso social observado entre os anos 40 a 70 por causa das políticas públicas e do violento progresso econômico, enfatiza Antunes, vem o contraste. Surgiram as crises econômicas provocadas pelo rompimento da ordem internacional, sob a argumentação de que a intervenção do Estado atrapalhava o desenvolvimento. Era o liberalismo que se irradiava novamente por todo o mundo. Para agravar o problema do emprego, surge com a informática a Terceira Revolução Industrial, em que as máquinas computadorizadas substituem os operários. Como piada, diz ele, "a indústria de hoje tem um trabalhador e um cachorro. O cachorro para não deixar ninguém chegar perto e o trabalhador para alimentar o animal".

Antunes dedica um dos capítulos da tese às explicações e interpretações conservadoras do desenvolvimento do capitalismo no século XX e em outro faz a crítica a essas interpretações e à concorrência individual.

Diante do panorama delineado, o autor da tese considera que o progresso econômico associado à ação do Estado tem um peso enorme na diminuição da desigualdade, como "provam os panoramas observados nas décadas subsequentes ao pós-guerra. Depois dessa fase, os indicadores de renda nos EUA pioraram significativamente. No topo estão os que ganham muito e na base a maioria com baixa remuneração, a que se destinam os serviços duríssimos e penosos".

 

Fonte: Diário da Saúde - www.diariodasaude.com.br

URL:  http://www.diariodasaude.com.br/print.php?article=desenvolvimento-economico-desigualdade-social

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