22/03/2022

Na Bíblia, a vergonha não é uma emoção privada

Redação do Diário da Saúde
Na Bíblia, a vergonha não é uma emoção privada
Na Bíblia, os personagens "vestem-se de vergonha". [Imagem: Julius Schnorr von Carolsfeld/Charles Foster/Wikimedia Commons]

Vergonha externa

Ainda que os psicólogos continuem discutindo se a vergonha é natural ou é uma patologia, a vergonha é uma das primeiras emoções mencionadas na Bíblia: No Jardim do Éden, Adão e Eva nunca sentiram isso, mesmo estando nus.

Mas, depois da Queda, a expulsão do Paraíso, a vergonha se torna constante e inevitável. Ela é experimentada centenas de vezes por personagens bíblicos maiores e menores e, às vezes, coletivamente por povos inteiros.

Deus aplica a vergonha como punição aos piores pecadores. É um destino quase tão ruim quanto a morte.

Isso parece bem diferente do que ocorre hoje.

Ao pesquisar o tema, o professor Anthony Lipscomb, da Universidade Brandeis (EUA), destaca que tamanha diferença se deve ao fato de que os antigos hebreus e os povos bíblicos em geral não pensavam na vergonha da mesma forma que nós.

Emoção externalizada

Para nós, a vergonha é um estado emocional interno: Você pode senti-la sem apresentar nenhum sinal físico externo. Mas uma separação clara entre mente e corpo é uma ideia ocidental que se desenvolveu na Grécia antiga, por volta do ano 450 AC.

Na Bíblia, que foi escrita entre 1.200 e 100 AC, não havia uma divisão clara entre o psicológico e o físico, e talvez nem mesmo um conceito do "eu interno" como nós temos hoje, defende o professor Lipscomb.

Em vez disso, as emoções se manifestavam na atividade física ou em um sinal externo no corpo. Os sentimentos não eram uma experiência imaterial escondida nas profundezas de uma pessoa. Eles se mostravam publicamente e mudavam seus relacionamentos com as pessoas ao seu redor.

Veja a história de Tamar, filha do rei Davi, que é estuprada por Amnon, seu meio-irmão. Implorando a Amnon para não violá-la, ela diz: "Onde levarei minha vergonha?"

O professor Lipscomb diz que ela quer dizer isso literalmente: Sua desgraça não é um sentimento interno, mas um fardo físico real que ela será forçada a carregar.

E vemos como o fardo se manifesta depois que Amnon estupra Tamar: Ela joga poeira na cabeça e rasga a túnica.

"Estes são sinais do fardo que ela está carregando," explica Lipscomb. "Sua vergonha não é um trauma interno, embora certamente a violência sexual traumatize, mas é uma encenação pública da violência de Amnon e a posição diminuída [de Tamar] na comunidade".

Na Bíblia, a vergonha não é uma emoção privada
Hoje, os psicólogos se perguntam se a vergonha é natural ou é uma patologia.
[Imagem: CC0 Public Domain/Pixabay]

Vergonha externa

Lipscomb estudou a vergonha também no livro de Jó. O amigo de Jó, Bildade, tenta convencê-lo da justiça de Deus. Ele assegura a Jó que Deus trata com justiça as pessoas boas. Aqueles que odeiam o bem, diz ele, "vestem vergonha".

Pouco antes do discurso de Bildade, Jó diz que sua angústia é tão intensa que é como se "minha carne estivesse coberta de vermes". Jó ainda está muito vivo, mas ele se sente como se já fosse um cadáver apodrecendo no chão.

Lipscomb argumenta que há uma ligação entre revestir-se de vergonha e estar vestido com vermes: Na imaginação hebraica, a vergonha era um estado de sofrimento físico em um continuum com a morte. Ela leva a uma degradação do corpo semelhante à forma como um corpo se decompõe após o enterro.

"A vergonha é de alguma forma paralela, de alguma forma em uma relação com a ideia de morte," explica ela. "E o que ocorre, o que acontece quando você morre? Bem, você tem essa diminuição física do corpo."

Vergonha moderna

Mas se a vergonha é um assunto privado, como é na sociedade moderna, você pode esconder o que fez de errado: A pessoa injustiçada pode sofrer em silêncio ou fora de vista.

Hoje, as emoções podem ser divorciadas de sua moralidade pública e social.

"A prática profundamente arraigada do Ocidente, de considerar as emoções privadas, torna a devoção a Deus uma questão de piedade interior," disse Lipscomb. "Isso pode levar alguém a pensar que estar em harmonia com Deus é puramente uma questão do coração, sem a necessidade de agir."

A tradição bíblica sugere outra coisa, defende Lipscomb: "O que fazemos importa tanto quanto o que sentimos".

 

Fonte: Diário da Saúde - www.diariodasaude.com.br

URL:  

A informação disponível neste site é estritamente jornalística, não substituindo o parecer médico profissional. Sempre consulte o seu médico sobre qualquer assunto relativo à sua saúde e aos seus tratamentos e medicamentos.
Copyright 2006-2023 www.diariodasaude.com.br. Cópia para uso pessoal. Reprodução proibida.