06/12/2010

Tempo do gene define se ele causará doença autoimune

Fábio de Castro - Agência Fapesp

Doenças autoimunes

Em 1997, o gene AIRE ("regulador autoimune", em inglês) foi identificado como responsável pela suscetibilidade a uma rara doença.

Desde então, novos estudos têm revelado indícios de que o gene está profundamente envolvido com um mecanismo fundamental para as doenças autoimunes em geral: a tolerância imunológica.

De acordo com uma das principais especialistas no assunto em todo o mundo, Diane Mathis, da Escola de Medicina da Universidade Harvard (Estados Unidos), a descoberta mais recente sobre o gene AIRE é intrigante: o gene é expresso ao longo de toda a vida, mas só causa a doença caso não seja expresso logo após o nascimento.

"Fizemos uma linhagem especial de camundongos nos quais podemos 'ligar' e 'desligar' o gene. Descobrimos, para nossa grande surpresa, que o AIRE precisa ser expresso apenas por um curto período de tempo após o nascimento - se isso não ocorrer, o animal pode ter doenças autoimunes. Mas se o gene é 'desligado' mais tarde, não faz diferença alguma", disse ela.

Tempo de expressão

A descoberta foi feita em 2009 e os especialistas ainda estão tentando conhecer a diferença entre a expressão precoce e a expressão tardia do gene.

"Isso foi muito surpreendente e queremos descobrir por que o gene continua sendo expresso ao longo da vida, sem no entanto influenciar no aparecimento das doenças autoimunes. Estudar esse mecanismo será fundamental para compreender de fato a função do AIRE - que, por sua vez, poderá ensinar muito sobre mecanismos importantíssimos de tolerância imunológica", explicou.

Embora a poliendocrinopatia autoimune associada à candidíase e distrofia ectodérmica (APECED, na sigla em inglês) - a principal doença causada pela mutação no gene AIRE - seja bastante rara, os cientistas estimam que ela poderá ser uma oportunidade única para a compreensão da tolerância imunológica, um dos processos mais fundamentais do sistema imune.

A tolerância imunológica é o mecanismo que permite que o sistema imune seja capaz de distinguir os antígenos nocivos de suas próprias células e moléculas, impedindo que elas sejam atacadas pelas células T - glóbulos brancos especializados em coordenar a resposta imune contra tumores e agentes infecciosos. Quando a tolerância imunológica é suprimida, as doenças autoimunes aparecem.

"Sabemos que o gene AIRE controla a eliminação das células T, tendo um papel fundamental na tolerância imunológica. Mas o mecanismo molecular pelo qual esse controle é feito é algo muito intrigante. Começamos a ter alguma informação sobre como isso acontece, mas ainda não entendemos exatamente o mecanismo", contou Diane.

De acordo com a cientista, se o mecanismo molecular AIRE for compreendido de forma precisa, esse conhecimento poderá fornecer opções de intervenção em pacientes de APECED, mas também de outras doenças.

"O gene não é importante apenas para o pequeno grupo de pacientes da APECED. Ele também é provavelmente fundamental para uma série de outras doenças ligadas à autoimunidade. Achamos que nesses casos não é o AIRE em si que está comprometido, mas algo nas vias moleculares", disse.

Mecanismo de vigilância

Diane explica que há um mecanismo de tolerância central que ocorre no timo - órgão no qual são produzidas as células T - e um mecanismo de tolerância periférica que ocorre diretamente nos tecidos. O AIRE é fundamental para a tolerância central.

Outra molécula, a FOXP3, é fundamental para a tolerância periférica. Distúrbios ligados a ela também tornam os pacientes suscetíveis a várias doenças autoimunes.

"Sabemos que o AIRE é responsável por parte da tolerância, mas as células T circulam pelo corpo para detectar infecções e ali, na tolerância periférica, há outro mecanismo que envolve esse outro fator de transcrição, que é o FOXP3, responsável por cuidar de erros que possam ocorrer com a tolerância. É como um mecanismo de vigilância. Os dois mecanismos operam de forma complementar", disse.

Para Diane, no entanto, o mecanismo molecular envolvido com o AIRE é o grande desafio, assim como os temas relacionados aos autoanticorpos e seu papel para a autoimunidade. Segundo ela, os problemas gerados pela mutação no gene são raros na população porque a doença não aparece caso apenas um cromossomo tenha a mutação.

"Podemos ter um casal sem qualquer sinal de doença autoimune, mas que tem a mutação. Quando eles têm um filho, a criança pode herdar a mutação do pai e da mãe e apresentar a doença, enquanto outros irmãos só herdam a mutação de um dos pais e não manifestam nenhum problema", explicou.

De acordo com Diane, para que as pesquisas na área continuem avançando, é preciso investir não apenas nos projetos de pesquisa, mas no desenvolvimento tecnológico.

"Atualmente, fazemos coisas que antes eram tecnologicamente impossíveis. Podemos sequenciar todos os receptores e células T de uma pessoa, por exemplo, mas isso custa incrivelmente claro. Para fazer esses estudos em larga escala, será preciso investir em tecnologia e tornar esses procedimentos mais baratos", afirmou.

Conhecimento compartilhado

Diane esteve em São Paulo na semana passada, quando participou da Escola Avançada sobre Imunodeficiências Primárias, que reuniu no Instituto da Criança do Hospital das Clínicas 77 estudantes brasileiros e estrangeiros envolvidos com pesquisas relacionadas às imunodeficiências primárias.

O evento, realizado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), em parceria com o Instituto Gulbenkian de Ciência, de Portugal, foi organizado no âmbito da Escola São Paulo de Ciência Avançada (ESPCA), um programa da FAPESP.

Diane destacou que aumentar a interação entre os cientistas de várias partes do mundo será um fator essencial para o avanço do conhecimento sobre as doenças autoimunes. Para ela, a realização do evento representou uma dessas oportunidades.

"Escolas como essa, que reúnem cientistas de várias partes do mundo - e permitem um contato mais prolongado que em congressos e conferências -, são fundamentais. Todos nós aprendemos muito e essa interação possibilita colaborações valiosas", afirmou.

Segundo Diane, até mesmo os casos de estudo apresentados pelos estudantes lhe trouxeram novas informações. "Estou aprendendo muito, porque pude ter contato com estudos relacionados a aspectos e abordagens que não haviam sido tratados por outros grupos", afirmou.

A coordenadora do evento, Magda Carneiro-Sampaio, professora do Departamento de Pediatria da FMUSP, ressaltou que a presença de Diane foi um dos principais destaques da Escola. "Diane é hoje a maior estudiosa do fenômeno da tolerância imunológica central, no qual o gene AIRE exerce um papel crucial", disse.

Geraldo Passos, das Faculdades de Odontologia e de Medicina, ambas da USP em Ribeirão Preto, também destacou a participação da cientista norte-americana. "A professora Diane é hoje a principal especialista sobre o gene AIRE. A participação dela no evento foi uma oportunidade muito importante, especialmente para os alunos", disse.

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