18/06/2025

Pode haver um terceiro estado entre a vida e a morte

Peter A. Noble e Alex Pozhitkov - The Conversation
Pode haver um
Um dia, os biorrobôs poderão ser projetados para administrar medicamentos e limpar placas arteriais.
[Imagem: Kriegman et al. 2020/PNAS]

Onde termina a vida e começa a morte?

Vida e morte são tradicionalmente vistas como opostas. Mas o surgimento de novas formas de vida multicelulares a partir das células de um organismo morto introduziu um "terceiro estado" que se estende além dos limites tradicionais de vida e morte.

Normalmente, os cientistas consideram a morte como a interrupção irreversível do funcionamento de um organismo como um todo. No entanto, práticas como a doação de órgãos destacam como órgãos, tecidos e células podem continuar a funcionar mesmo após a morte de um organismo.

Essa resiliência levanta a questão: Quais mecanismos permitem que certas células continuem funcionando após a morte do seu organismo original?

Somos pesquisadores que investigam o que acontece dentro dos organismos após sua morte. Em nossa revisão publicada recentemente, descrevemos como certas células - quando providas de nutrientes, oxigênio, bioeletricidade ou sinais bioquímicos - têm a capacidade de se transformar em organismos multicelulares com novas funções após a morte.

Vida, morte e o surgimento de algo novo

O terceiro estado desafia a forma como os cientistas normalmente entendem o comportamento celular. Embora lagartas se metamorfoseando em borboletas ou girinos evoluindo para sapos possam ser transformações de desenvolvimento comuns, existem poucos casos em que os organismos mudam de maneiras que não sejam predeterminadas.

Tumores, organoides e linhagens celulares que podem se dividir indefinidamente em uma placa de Petri, como células HeLa, não são considerados parte do terceiro estado porque não desenvolvem novas funções.

No entanto, pesquisadores descobriram que células da pele extraídas de embriões de sapos mortos foram capazes de se adaptar às novas condições de uma placa de Petri em laboratório, reorganizando-se espontaneamente em organismos multicelulares chamados xenorrobôs [ou xenobots]. Esses organismos apresentaram comportamentos que vão muito além de suas funções biológicas originais. Especificamente, esses xenorrobôs usam seus cílios - pequenas estruturas semelhantes a pelos - para navegar e se mover pelo ambiente, enquanto em um embrião de sapo vivo os cílios são normalmente usados para mover o muco.

Os xenorrobôs podem se mover, se curar e interagir com o ambiente por conta própria.

Os xenorrobôs também são capazes de realizar autorreplicação cinemática, o que significa que eles podem replicar fisicamente sua estrutura e função sem crescer. Isso difere dos processos de replicação mais comuns, que envolvem crescimento dentro ou sobre o corpo do organismo.

Pesquisadores também descobriram que células pulmonares humanas solitárias podem se automontar em organismos multicelulares em miniatura que podem se mover. Esses antrorrobôs se comportam e são estruturados de novas maneiras. Eles não apenas são capazes de navegar em seus arredores, mas também de reparar a si mesmos e células neuronais danificadas localizadas nas proximidades.

Em conjunto, essas descobertas demonstram a plasticidade inerente dos sistemas celulares e desafiam a ideia de que células e organismos podem evoluir apenas de maneiras predeterminadas. O terceiro estado sugere que a morte do organismo pode desempenhar um papel significativo em como a vida se transforma ao longo do tempo.

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O diagrama A mostra um robô antropomórfico construindo uma ponte sobre um neurônio ao longo de três dias. O diagrama B destaca o "ponto" em verde no final do terceiro dia.
[Imagem: Gumuskaya et al. 2023/Advanced Science]

Condições post-mortem

Vários fatores influenciam se determinadas células e tecidos conseguem sobreviver e funcionar depois que um organismo morre. Eles incluem condições ambientais, atividade metabólica e técnicas de preservação.

Diferentes tipos de células têm diferentes tempos de sobrevivência. Por exemplo, em humanos, os glóbulos brancos morrem entre 60 e 86 horas após a morte do organismo. Em camundongos, as células musculares esqueléticas podem ser regeneradas após 14 dias post-mortem, enquanto as células fibroblastos de ovelhas e cabras podem ser cultivadas por até um mês ou mais post-mortem.

A atividade metabólica desempenha um papel importante na capacidade das células de continuar a sobreviver e funcionar. Células ativas que requerem um suprimento contínuo e substancial de energia para manter sua função são mais difíceis de cultivar do que células com menor necessidade energética. Técnicas de preservação, como a criopreservação, podem permitir que amostras de tecido, como a medula óssea, funcionem de forma semelhante às de fontes de doadores vivos.

Mecanismos inerentes de sobrevivência também desempenham um papel fundamental na determinação de se células e tecidos vão sobreviver. Por exemplo, pesquisadores observaram um aumento significativo na atividade de genes relacionados ao estresse e ao sistema imunológico após a morte do organismo, provavelmente para compensar a perda de homeostase. Além disso, fatores como trauma, infecção e o tempo decorrido desde a morte afetam significativamente a viabilidade dos tecidos e células.

Fatores como idade, saúde, sexo e tipo de espécie moldam ainda mais o cenário pós-morte. Isso é observado no desafio de cultivar e transplantar células de ilhotas metabolicamente ativas, que produzem insulina no pâncreas, de doadores para receptores. Pesquisadores acreditam que processos autoimunes, altos custos de energia e a degradação dos mecanismos de proteção podem ser a razão por trás de muitas falhas em transplantes de ilhotas.

A forma como a interação dessas variáveis permite que certas células continuem funcionando após a morte de um organismo ainda não está clara. Uma hipótese é que canais e bombas especializados, embutidos nas membranas externas das células, funcionem como circuitos elétricos complexos. Esses canais e bombas geram sinais elétricos que permitem que as células se comuniquem entre si e executem funções específicas, como crescimento e movimento, moldando a estrutura do organismo que eles formam.

A extensão em que diferentes tipos de células podem sofrer transformação após a morte também é incerta. Pesquisas anteriores descobriram que genes específicos envolvidos em estresse, imunidade e regulação epigenética são ativados após a morte em camundongos, peixes-zebra e humanos, sugerindo um amplo potencial de transformação entre diversos tipos de células.

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Diferentes tipos de células têm diferentes capacidades de sobrevivência, incluindo os glóbulos brancos.
[Imagem: Ed Reschke/Stone]

Implicações para a biologia e a medicina

O terceiro estado não apenas oferece novos insights sobre a adaptabilidade das células. Ele também oferece perspectivas para novos tratamentos.

Por exemplo, robôs antropogênicos poderiam ser obtidos a partir do tecido vivo de um indivíduo para administrar medicamentos sem desencadear uma resposta imunológica indesejada. Robôs antropogênicos projetados e injetados no corpo poderiam potencialmente dissolver a placa arterial em pacientes com aterosclerose e remover o excesso de muco em pacientes com fibrose cística.

É importante ressaltar que esses organismos multicelulares têm uma vida útil finita, degradando-se naturalmente após quatro a seis semanas. Esse "interruptor de segurança" impede o crescimento de células potencialmente invasivas.

Uma melhor compreensão de como algumas células continuam a funcionar e se metamorfosear em entidades multicelulares algum tempo após a morte de um organismo é promissora para o avanço da medicina personalizada e preventiva.


Autores deste artigo: Peter A. Noble é professor de microbiologia na Universidade do Alabama em Birmingham, e Alex Pozhitkov é líder técnico de bioinformática na Escola de Pós-Graduação em Ciências Biológicas Irell & Manella.

Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation, no qual poderá ser lida a versão original.

Checagem com artigo científico:

Artigo: Unraveling the Enigma of Organismal Death: Insights, Implications, and Unexplored Frontiers
Autores: Peter A. Noble, Alexander Pozhitkov, Kanhaiya Singh, Erik Woods, Chunyu Liu, Michael Levin, Gulnaz Javan, Jun Wan, Ahmed Safwat Abouhashem, Shomita S. Mathew-Steiner, Chandan K. Sen
Publicação: Physiology
DOI: 10.1152/physiol.00004.2024
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