Judicialização da saúde
Casos tão complexos como a acusação contra um médico que realizou vasectomia no paciente em vez de uma cirurgia de fimose ou a imputação de erro no diagnóstico e tratamento de um tumor benigno que acabou se tornando maligno e levou uma mulher à morte têm cada vez mais chegado à Justiça no Brasil.
Acusações referentes a erro médico somaram 70 novas ações por dia no país - ou três por hora - em 2017.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foram pelo menos 26 mil processos sobre o assunto no ano passado. O órgão compila dados enviados por tribunais estaduais e federais, além do STJ (Superior Tribunal de Justiça) - onde foram parar os dois casos citados anteriormente. Por inconsistências metodológicas entre as bases, contudo, o número pode ser maior.
Para entrevistados de diversos lados do balcão, o volume de ações na Justiça se relaciona com um quadro mais geral de judicialização da saúde. Este é o nome dado à crescente busca, por parte de cidadãos, do judiciário como alternativa para garantia do acesso à saúde, por exemplo por remédios ou tratamentos - o que, por sua vez, esbarra nas limitações orçamentárias do Poder Público ou no planejamento de empresas privadas do ramo.
E o fenômeno tem ligação também com outra faceta: a busca pelos chamados seguros de responsabilidade civil profissional. Em linhas gerais, este serviço funciona com o pagamento de apólices por trabalhadores como médicos e veterinários que, em caso de se tornarem réus em ações relacionadas com o exercício de suas ocupações, têm custos como pagamento de honorários de advogados e eventuais indenizações cobertos.
Segundo dados da Superintendência de Seguros Privados (Susep), esta categoria vem crescendo nos últimos anos. Em valores reais, os prêmios (prestações pagas pelos contratantes) do RC Profissional passaram de R$ 236 milhões em 2015 para R$ 312 milhões em 2016 e R$ 327 milhões em 2017. O primeiro semestre de 2018 já mostra avanço em relação ao mesmo período de 2017: crescimento de 8%. São 15 empresas atuando no segmento.
Confiança entre médico e paciente
A adesão dos médicos a esse tipo de seguro tem seus críticos: o Conselho Federal de Medicina (CFM) e representações regionais da categoria recomendam explicitamente a não contratação do seguro.
"Os conselhos pregam que a relação entre médico e paciente deve ser da maior confiança possível, construída na base da generosidade e segurança. Quando o médico já está protegido pelo seguro, a relação começa na defensiva," aponta José Fernando Vinagre, corregedor do CFM.
Outro argumento é o de que exemplos internacionais mostram que a adesão da classe médica ao seguro contribui para um aumento no número de ações, "que muitas vezes se baseiam em pedidos quase sempre emitidos, destemperadamente, por pacientes mal orientados, ou ainda envolvendo interesses financeiros de terceiros," diz um comunicado do CFM.
A entidade critica ainda as restrições na cobertura dos seguros e uma relação custo-benefício não compensadora. Dependendo da especialidade, os custos mensais para o segurado podem variar de R$ 100 a R$ 1000, considerando uma faixa de cobertura de R$ 500 mil em prêmio.
"Em relação aos profissionais, é inegável que houve a chamada 'mercantilização' da profissão. Está praticamente extinta a figura do médico familiar, inquestionável como um sacerdote. Hoje temos em regra uma relação mais fria, com atendimentos muitas vezes rápidos e desumanizados por conta da precariedade das condições de atendimento e jornadas de trabalho, aliada à alta quantidade de atendimentos em curto espaço de tempo por conta da atuação dos planos de saúde," disse Renato Assis, especialista em Direito da Saúde.
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